Gato magoado




De todas as coisas que já vi ou senti, o teu rosto sereno de olhos opacos foi a mais dolorosa de todas. Jazias no centro de todos nós, no centro daquela sala, mas também no meu próprio centro. O meu coração dir-se-ia parado, congelado tal como o tempo estava porque nenhum relógio se atrevia a bater as horas naquele momento. O som de fundo era gradualmente preenchido por fungadelas e lágrimas, eu vi-as cair, lembravam-me as gotas de chuva que observava da janela do meu quarto. Estas lágrimas desfaziam-se no chão tão delicadamente como as gotas de chuva na relva molhada. Através das pequenas janelas da capela perscutei as nuvens. Estas batiam umas nas outras atingindo o tom negro e aumentando a intensidade da chuva.
As nuvens estavam de luto.
Eu era como uma peça de ouro num ferro-velho. Todas as pessoas me olhavam, atentas a cada respiração minha, a cada passo que dava, a cada olhar que dirigia. Esperavam o momento em que eu cede-se, aqueles segundos derradeiros em que vacilaria na minha postura e choraria mais do que tudo. Não lhes dei essa hipótese. Continuava rígida, a sentir-me empalidecer como a carne morta da minha mãe. Já não ouvia sequer um batimento vindo do interior de mim, eu era um bloco de gelo, olhava para tudo e todos. Dirigia os meus olhos para as pessoas chorosas, para as flores que cobriam o chão, para o padre que falava como um iluminado. Não chorava. Olhava para a minha mãe no seu leito branco, para a sua fotografia sorridente, para os poemas de despedida nas flores. Não chorava. Podia dizer que não tinha coração, acreditava nisso piamente naquele momento, não me sentia palpitar, não me sentia quente. Sentia-me sim mais morta que a minha mãe.
Contudo, quando sentia que o meu pai não ia aguentar, poisava-lhe a mão no ombro, tentando tornar um gesto quente e dizia-lhe: "Está tudo bem".
Ele acenava afirmativamente com a cabeça e obrigava os seus olhos a aguentarem a crueldade do momento. Se a mãe tinha realmente partido... era impossível, eu sentia em toda aquela sala a sua força, a sua jovialidade, entrava em mim devagar e serenamente. Eu deixava entrar e mantinha-me firme na minha posição. Não era possível alguém como ela "partir", alguém como ela não "parte", fica e fica sempre.
Nesse momento eu senti-me honrada por ser sua filha, nesse momento eu senti que realmente era digna da mãe que tinha. Por isso levantei-me, segurei entre os dedos trémulos o meu caderno de poesia e avancei para dar o meu testemunho.


E era uma vez um dia...

Enquanto andava sentia que o tempo tinha parado. Os meus pés mechiam-se, parecia que tinha alguma espécie de GPS incrustado no meu corpo que não deixava que me desviasse do meu caminho, contudo, a minha mente estava longe de estar no caminho.
Olhava para o chão e continuava com os pensamentos no céu...pensava em mim, nos outros, em tudo. Perguntava-me o que tinha acontecido para me ter tornado na pessoa com quem falava. Por vezes tão horrível, por vezes tão sensível. Já não me conhecia, ou pelo menos já não conhecia a Daniela que pensara conhecer. Provavelmente nem nunca me conheci e ainda mais provável é nunca me vir a conhecer mas, na nossa vida, experimentamos sempre tentar conhecer-nos o melhor possível. É inacreditável pensar que somos as pessas com quem passamos mais tempo e mesmo assim, apesar de estarmos a todo o segundo connosco, a probabilidade de nunca nos conhecermos totalmente é altíssima.
Eu sei que não me conheço. Ainda há partes de mim que são relativas ao que me conhecia, porém novas facetas ou novos atributos/defeitos foram descobertos e nem pareço eu, pareço algum ninguém que alguém nunca será.
Continuei a andar. A dado momento já nem ouvia nada, agradava-me estar longe deste mundo. E daí os meus olhos terem tentado chorar: estava absolutamente só. Absolutamente só, nunca, só, comigo. Eu, eu, eu e mais alguns "eus" que ainda não tenho conhecimento. Todos os dias é de igual modo, faço uma turma constituída por mim em que discutimos o porquê da existência e subimos para o céu só para não pensar no inferno aqui em baixo.
Num dia como este é sempre melhor continuar a andar.


Pequena

Era uma vez uma pequena.


Tudo nela era pequeno e definhava.
O seu coração de algodão, qual fera,
Ninguém amava.


As pessoas e o mundo cresciam muito rápido.
As flores e os carros aumentavam de repente.
O céu ficava a cada dia mais longe…
Toda aquela cidade crescia de uma única semente.


Ela sonhava acordada…
Descia a cabeça à terra e deixava os pensamentos na lua.
Os seus olhos não conseguiam conter uma única paisagem.
Era tudo demasiado grande.


Ela corria e chorava.
Tentava abarcar nos seus pequenos braços uma felicidade passada.
Dizia que sentia falta dela
Tinha sido acolhedor… como o calor de uma vela…


Acolhedor e maternal…
Ela bem que tentava encontrar um vestígio, uma mesmo que simples marca,
De que tudo tinha mesmo acontecido.


Num momento encontrou um robe.
Era enorme, gigante, monstruoso.
Ela estava tão pequena que se perdia nele.


Olhou o tecto. Estava já tão longe…
O chão, parecia que ia engoli-la de tão perto estar.
Ela chorava e continuava a chorar.
Os pensamentos tinham ido e fugido para um tecto longínquo.


Nos seus olhos formava-se a imagem do robe amarelo.


Noutra altura, noutra vida talvez, tinha sido apenas um robe.
Nesta altura, nesta vida quem sabe, era a última lembrança de amor que a habitava.

Morte do meu ser

A morte não é o fim
mas um novo amanhecer .
Um sol negro que nasce
para que se continue a sofrer.

Já morri e continuo a morrer.
Quase ninguém me vê.
Um dia esquecerão o meu nome
e não mais existirei.

Não preciso forçar o corpo a morrer.
A morte é apenas não ser visto.


Há sempre mais morte...

Ás vezes, quando consideramos que tudo já piorou dentro do humanamente possível, a realidade dá-nos uma estalada na cara com mais um acontecimento imprevisto para tentar deitar-nos mesmo abaixo, abaixo do chão.
Tal como qualquer pessoa com dois dedos de testa consegue imaginar, a morte de um familiar, como foi a morte da minha mãe, é algo que em variadíssimas circunstâncias, pode levar à morte da pessoa. Bem, na verdade não sou uma pessoa que possa dizer com clareza aquilo que sentiu, tal é que nem sei de que maneira estou relativamente à morte da minha própria mãe. Porém, há coisas que certamente nos abalam bastante um mês depois da supracitada morrer que é: o nosso pai arranjar outra mulher.
Consegui até aguentar-me bastante bem contudo, não passam uns dois meses até deixar aquela e arranjar outra, brasileira. Por uma razão que não vou referir aqui, o facto de ela ser brasileira afecta-me demasiado, quase insuportavelmente. Coisa que o namorado dela sabe, ou pelo menos deveria ter olhos para saber.
Com esta mulher já aconteceram variadíssimas coisas, cada uma delas levando-me lentamente a um estado indecifrável de tristeza. A gota de água aconteceu a apenas umas semanas.
Há sempre mais tristeza quando achamos que é impossível, e há também sempre mais morte. Ao contrário do que se pensa a morte é um estado, estar-se morto e ir-se morrendo, há quem chame a isso depressão eu chamo-lhe morte.